PPUE 2007 - Brevíssima história do Tratado de Lisboa

Treze anos depois, eis que Portugal volta a ser chamado por força dos tratados a exercer a presidência do Conselho da União Europeia, agora, porém, em circunstâncias políticas, económicas e jurídicas muito diversas daquelas de 2007. E pela primeira vez o fazemos sob as regras do Tratado de Lisboa.

Cheguei ao cargo de Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Europeus pela mão de Luís Amado, sendo Primeiro-Ministro José Sócrates. Transitámos do Ministério da Defesa na sequência da demissão por motivos de saúde do Professor Freitas do Amaral, que ocupava o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e que Luís Amado foi convidado a substituir.

Naturalmente que o nosso, meu, primeiro objetivo foi preparar a presidência do Conselho UE de 2007 e, no devido semestre, cumpri-la. Encontrei em Luís Amado, devo dizer, o apoio e a “liberdade” que precisava. Sempre gostei de ter espaço próprio. A confiança que em mim depositou foi quase ilimitada. Pedia-me sobretudo cautela nas relações com a imprensa, não fosse eu ir além do que é mediaticamente aceitável para um Secretário de Estado, que na altura não estava autorizado a dispor de assessor de imprensa, tarefa a ser cometida a um dos seus adjuntos. No meu caso escolhi Francisco Alegre Duarte, também diplomata, que fez brilhantemente um pouco desse trabalho. Tive aliás a sorte (talvez a sabedoria) de ter uma excelente equipa de colaboradores liderada pelo agora Embaixador Francisco Vaz Patto, o “chefe de gabinete” perfeito.

O desafio que tínhamos pela frente não era fácil. A Constituição para a Europa, fruto da Convenção para o Futuro da Europa presidida por Valéry Giscard d ´Estaing (sendo a delegação do Governo português presidida pelo meu saudoso amigo Professor Ernâni Lopes, e eu seu número dois), acabara de ser reprovada em referendo na França e na Holanda. Foi um revés muito sentido depois do árduo trabalho desenvolvido, politicamente muito complexo, por vezes também algo opaco, para a redação da Constituição. Sobretudo quando muitos “constituintes” acreditavam convictamente que o texto obtido respondia às necessidades da UE no contexto específico da época, nas vésperas do alargamento aos países europeus do centro e do Leste, então finalmente libertos da esfera de influência soviética.

Absorvida a deceção, e o choque que a rejeição causou nas elites europeias, estando fora de causa, em particular em França, a repetição de um referendo nos exatos moldes do precedente, haveria que arranjar uma alternativa que, mantendo em boa medida, sobretudo quanto ao funcionamento da União Europeia, as disposições da afastada “Constituição”, fosse mais palatável aos olhos (e ao sabor) da opinião pública europeia. Pretendia-se acima de tudo despojar o antigo texto da sua retórica mais europeísta ou idealista, digamos assim, descarná-la de ambições federalistas ou proclamações ideológicas, mas garantindo que a gestão das instituições se tornasse mais eficaz, mais estável e mais previsível. Uma mudança impulsionada (ou imposta) pelo novo alargamento (assegurando simultaneamente que os Estados-membros ditos grandes continuassem a reservar para si um poder de direção e decisão determinantes). E também aceitar uma maior democratização do processo decisório da União, concedendo aos Parlamentos nacionais a faculdade de oposição a iniciativas da Comissão, embora, diga-se, de uma forma mais teórica e residual que efetiva. Finalmente, para além da célebre cláusula que permite a um Estado-membro deixar a União, queria-se fortalecer e expandir o mecanismo das cooperações reforçadas, permitindo que um grupo de Estados intensificasse a sua cooperação em certos domínios. Tudo sem esquecer a quase generalização da maioria qualificada (ponderada) no processo de decisão da União. 

A Portugal, à nossa Presidência, coube assim “transformar” a Constituição europeia num novo tratado (de facto dois) que cumprisse em geral aqueles objetivos. Para o efeito o Conselho europeu determinou que se convocasse uma conferência intergovernamental, que trabalharia na base de um mandato que orientaria o nosso trabalho. A responsabilidade de o elaborar coube à Presidência alemã, que nos precedeu. Não foi, longe disso, um desafio fácil para os alemães. Entre as ambições de uns, as cautelas e os receios de outros (e as respetivas táticas políticas), encontrar um texto que que pudesse ser consensual revelou-se um cabo dos trabalhos. A certo ponto gerou-se a convicção que a presidência alemã não conseguiria levar a bom porto a sua missão, e que as sobras iriam parar à mesa da nossa Presidência.

José Sócrates fez saber, nessa altura, que não levaríamos por diante o processo de reforma dos tratados se o mandato não fosse aprovado durante a presidência da Alemanha.  Considerava que se os germânicos falhassem, dispondo eles de um muito maior poder de influência e margem de manobra que os portugueses, correríamos o risco de também soçobrar sem glória nem proveito. Fechar o mandato e a conferência intergovernamental em 6 meses era uma tarefa quase hercúlea. Fez, portanto, muita pressão sobre os seus pares para que o desacordo fosse ultrapassado, as divergências eliminadas.  In extremis o conseguiu e iniciámos a nossa presidência, no segundo semestre, munidos de uma carta de missão clara e objetiva.

Não obstante, algumas bainhas ficaram por coser. Tínhamos questões técnicas a tratar, mas também decisões e escolhas políticas a fazer. Das primeiras se ocupava um grupo de trabalho técnico do Conselho sob a direção e autoridade do Diretor Jurídico do Conselho, Jean Claude Piris, implacável para os dissidentes do alto da sua indisputável autoridade jurídica. Dirigiu os trabalhos com mão de ferro.  Nos temas de natureza política, todavia, o que estivesse por resolver deveria ser “fechado” pela Presidência.

Certos dos chamados “pontos em aberto” eram politicamente mais sensíveis; outros, com um pouco de boa vontade, mais fáceis de concluir. Como se imaginará, os mais complexos relacionavam-se com a repartição de poderes no quadro (de decisão) institucional da União Europeia. Mas outros houve, mais triviais, como por exemplo a autorização para que um Estado-membro pudesse utilizar o seu alfabeto na escrita da palavra EURO impressa na nota bancária, desejo que o Banco Central Europeu viu com maus olhos e requereu bastante persistência até que se deixasse convencer.

Não obstante a comunidade de valores, o muito invocado princípio da solidariedade, o destino comum representado no objetivo de uma Europa cada vez mais unida, a realidade crua é que a União Europeia congrega Estados-nação com o que esta noção (e facto) significa em todos os domínios da respetiva ação externa. Poder é poder, e é para ser manobrado na defesa dos nossos interesses, ofensivos e defensivos. É assim ingénuo pressupor que em nome de “princípios quase universais” os Estados estarão dispostos a abdicar, sem garantias de igualdade e sem a certeza de um benefício concreto, de parcelas significativas desse poder. Tanto mais que feridas profundas de tempos recentes ainda não sararam completamente, e desconfianças e receios persistem. Foi assim em 2007; continua a ser assim, ao que me parece, em 2020.

As dificuldades com que nos confrontámos levaram-me, por exemplo, a uma viagem “secreta” (um Falcon foi-me buscar a Bruxelas, comigo viajando o então Diretor Geral dos Assuntos Europeus, Embaixador Nuno Brito) a uma capital europeia para aplainar terreno, ou quem sabe mesmo obter uma concessão, para ultrapassar a rejeição do respetivo Governo quanto à nossa proposta para uma nova ponderação dos votos no Conselho aconselhada pelo alargamento. Não consegui o que desejava, mas julgo que contribuí para desanuviar o ambiente e criar um ambiente de boa vontade. Pelo menos regressei a Lisboa com a oferta de um livro do meu irmão António traduzida na língua desse país, uma surpresa (não o imaginava conhecido ali) e sem dúvida uma delicadeza dos meus anfitriões.

Não obstante todo o empenho da presidência portuguesa, e aproximando-se o término do nosso semestre, era cada vez mais evidente que seria impossível resolver as questões mais delicadas apenas bilateralmente, sem recurso a uma cimeira de Chefes de Estado e de Governo que tentasse desbloquear os impasses que subsistiam. Assim foi.  Recordo que o ambiente na sede da presidência, na Expo, era de alguma tensão e bastante inquietude. As notícias que nos chegavam sobre a disponibilidade de vários Estados-membros para um acordo não eram animadoras. A nossa equipa, liderada naturalmente pelo Primeiro-Ministro, que foi sempre muito ativo e empenhado no sucesso da nossa presidência, fora reforçada in loco com a presença de António Vitorino e Maria João Rodrigues, ambos com larga experiência em matérias europeias.

Mas as horas corriam e os nós não se desatavam. Confesso que a certa altura me deixei abater, convencido que não seríamos capazes de obter um compromisso para o mais delicado problema que persistia: o peso relativo, isto é o número de votos, a atribuir a cada Estado-membro no processo de decisão legislativo. Papel para cá, papel para lá, bilaterais aqui, bilaterais acolá, tudo antecipava o falhanço. As posições e as teimosias extremavam-se.  Mas, hélas, fruto talvez do cansaço e da exasperação, como tantas vezes sucede nas negociações europeias, quase a bater a última badalada, o acordo, o respetivo texto de difícil interpretação como é também quase sempre o caso (a chamada ambiguidade construtiva), acabou por surgir das quase trevas da noite. O presidente francês Nicolas Sarkozy, é justo dizê-lo, ajudou-nos neste final feliz. A sua conhecida irrequietude e hiperativismo, que o tornam ubíquo, e também a sua coragem política, animaram uma presidência já na fase da descrença.

Anunciado nos corredores o consenso, regressou-se ao plenário na sala do Conselho para “carimbar” o acordo, aprovar o texto na sua globalidade e dar formalmente início ao processo de ratificação do novo tratado que ali nascia. Preparava-se José Sócrates para anunciar urbi et orbi, formalmente, a aprovação, eis que um dos Primeiros-Ministros levanta a mão, toma a palavra e proclama querer um esclarecimento prévio a dar o seu assentimento. Ficámos lívidos: estávamos a ver a vida andar para trás. Sócrates sussurrou-me: “vai lá ver o que é que ele quer”. Levantei-me e fui aproximar-me do Primeiro-Ministro em causa, sentado na mesa (imensa) do lado oposto ao da nossa delegação. Fez-me duas ou três perguntas sobre os motivos que sustentavam uma solução que negociáramos com outro Estado-membro. Felizmente deixou-se convencer sem grandes explicações.   Respirei, respirámos de alívio. José Sócrates pôde então, finalmente, proclamar com sucesso o encerramento da conferência.

Da sala, o Primeiro-Ministro, acompanhado pelo Presidente da Comissão José Manuel Durão Barroso, partiu então para uma conferência de imprensa. Ficou célebre a frase que na altura José Sócrates dirigiu a Durão Barroso ao vivo e em direto: “porreiro, pá!”. E foi mesmo, sobretudo para todos aqueles, e foram muitos, que trabalharam naquela presidência portuguesa de 2007.

Era já noite avançada. José Sócrates convidou todos os funcionários portugueses que ainda estavam no edifício, e eram umas dezenas, para uma taça de champanhe acompanhada de tapas. A nossa alegria era indisfarçável, mas as dores no corpo também. Chegada a hora da partida o Primeiro-Ministro instruiu-nos para que a partir de então todas as referências ao novo texto legal europeu fossem feitas sob o nome de “Tratado de Lisboa”. Assim se fez e assim ficou conhecido.


Testemunho Manuel Lobo Antunes